A Saúde e Segurança do Trabalho contra o Trabalho análogo ao escravo

A Saúde e Segurança do Trabalho contra o Trabalho análogo ao escravo. 


"⁠A pior invenção humana, sem sombra de dúvidas, foi a escravidão de semelhantes."
Kamou Gedu (trecho capítulo "Escravidão")


Primeiramente...

No último mês nos surpreendemos com notícias de empresas conhecidas a anos no mercado terem seus nomes associados a prática de trabalho análogo a de escravo.

Me impressionei, inclusive, que no caso de uma grande vinícola, com nome de nascer do sol, a vítima dessa prática ter citado em seu relato um prevencionista, que presenciava de alguma forma essa prática e portando dando às costas a tudo que a SST promove.

Chocado com a possibilidade de haver colegas de área que atuam de modo tão, mas tão automatizado que possivelmente olham mais para documentos do que para a realidade, o que não é raro de se ver, mas nesse caso é absurdo, pensei nesse post.

Prevencionista, nunca, jamais e em tempo algum, feche os olhos ao sofrimento alheio, nem mesmo para manter seu sustento. Seja qual for o nível ou circunstância...

Nosso dever é zelar pelas NR, mas quando elas não zelam pela saúde e segurança do trabalho, nosso dever é zelar pela vida!

 

Contextualizando.

O barulho das máquinas já não incomodava mais Beto, nem mesmo toda aquela poeira e calor ou mesmo a fome e exaustão de 16 horas de trabalho por dia, machucava mesmo era a saudades de sentar a beira da praia e ver um pôr do sol com sua esposa, brincar no quintal com seus filhos ou jogar dominó com seu velho pai.

 

A vida não era fácil na sua cidade natal, por isso aceitou um trabalho em outro estado, de uma empresa que apareceu por ali e ofereceu uma oportunidade de ganhos que não se via por aquelas bandas, com oportunidade de realocar a família, depois de um ano de trabalho.

 

Mas desde que chegou naquele lugar tudo que fazia era trabalhar e ouvir ameaçar de um homem alto, sobrancelhas grossas e um rádio HT na mão, esbravejando o dia todo e só liberando os outros 100 trabalhadores para comprar comida na vendinha do local.

 

Não havia muita coisa nela, arroz, óleo e uns tubérculos meio mofados, mas tudo era caro e racionado, ali pagavam também pela “moradia” que era um galpão frio, úmido e escuro com beliches amontoadas, um único sanitário e uma espiriteira sobre uns blocos com poucas panelas e pratos de alumínio e nenhum talher.

 

Quando a auditoria fiscal do trabalho, acompanhada de outros agentes públicos de segurança chegaram ao local, Beto mal lembrava seu nome completo, não via mais cores, só tons de cinza e não lembrava de como era clara e forte a luz do dia.

 

Toda essa história é assistida numa pequena TV, posta ao lado de monitores de vigilância, da fabriqueta de roupas que funcionava no porão de uma grande varejista. Tonhão, vigilante, coça a cabeça indignado com a reportagem enquanto manda mensagens para o supervisor de produção, pois vê que tem trabalhadoras dormindo sobre as máquinas de costuras.

 

Disclaimer quanto ao tema.

Não há como falar sobre o tema sem comoção e indignação, especialmente porque, no Brasil, temos testemunhado “grandes” (e medíocres!) empresas se envolvendo em uso de mão de obra em condições análogas à escravidão, ainda que por prestadoras.

 

Pessoalmente o tema me revolta, pois ao refletir da perspectiva de quem tem sua vida tomada apenas para satisfazer a ganância, lucro e luxo de outros é sinceramente revoltante.

 

De criança ouvia que meu tataravô era balceiro e abolicionista, ajudava escravos em fuga a atravessar rios, na calada da noite, por se indignar com a escravidão, até o fatídico dia que foi encontrado morto, à beira da água. Seu sentimento vive através das gerações.

 

Conceituaremos a definição da chamada “escravidão contemporânea” ou o “trabalho análogo a de escravo” ou “situação análoga à escravidão”, sob uma perspectiva clara e didática, mas é necessário pontuar que nada consegue ser tão oposto a Saúde e Segurança do Trabalho.

 

Não há nada mais vil, no ser humano, do que a completa falta de empatia pelas coisas em especial quando entende por “coisa” o de sua própria espécie, não o vendo como “semelhante”, mas como algo que pode ser explorado é aí que não lidamos com humanos, mas monstros.

 

Nesse artigo não temos a pretensão de esgotar o tema, mas sim trazer a nota, especialmente dos profissionais de Saúde e Segurança do Trabalho, quão antagônica, oposta, inversa é essa prática vil, frente a essência de nossa área.

 

Isso porque, ainda que dedicados os auditores fiscais e outras autoridades públicas e órgãos de fiscalização são poucos, já nós prevencionistas muitos e estamos de fato em todos os lugares, afinal, poucas são as empresas que não precisam de um PGR ou PCMSO, não?

 

O que é trabalho análogo a de escravo?

Ao longo da história humana houve muitos subterfúgios para "justificar" a exploração da força de trabalho de outras pessoas de forma forçada, sem qualquer contraprestação justa,  condições (salubres) de trabalho ou empatia pelo semelhante.

 

Aliás, pequenas diferenças já dão margem para alguns acreditarem que o próximo não o é dada sua etnia, credo, cultura, cor, nacionalidade ou qualquer outro mínimo detalhe que permita a ignóbil visão de que esse não é “cidadão” ou “não tem alma”.

 

Isso deu margem para uma das piores formas de vilania que permeou pela história da humanidade e vem trazendo profundas e irreparáveis marcas sociais, do povo judeu, escravo por milênios no Egito ao povo negro, originários da África.

 

Tudo por ganhos e ganância; luxo e ausência de consciência, ao ponto de não amar nada que não seja espelho.

 

Essa prática (da escravidão) foi bastante difundida em muitas localidades do mundo, quando pessoas foram consideradas propriedades de outros e portando deveriam servir às necessidades de quem os subjugava.

 

A prática consiste na exploração da vida da vítima, que é submetida a condições indignas de trabalho sem qualquer contraprestação, apenas abrigo precário e alimento necessário para mantê-lo com vitalidade o bastante para continuar ser explorado.

 

Esse lado sombrio e vil do comportamento “humano” (termo difícil usar, dada a monstruosidade e falta de caráter) infelizmente nos impede, no século XXI, de dizer que essas eram práticas do passado.

 

Isso porque ainda apesar de lá no século XIX grande parte dos países do mundo se conscientizarem e oficialmente aboli-la , reconhecendo a abominação da prática, há quem insista agir por conveniência, sem medir consequências.

 

Não há como uma pessoa, de nossa época, crer ou fazer crer que para alguns a Declaração universal dos Direitos Humanos (1948) não tenha sido absolutamente correta em trazer ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, já despertos lá na Revolução Francesa (1789).

 

Temos consciência de que somos sim todos “iguais”, mesmo nas desigualdades de elementos que nos define somos iguais em direito e deveres, observado a cada um seus respectivos limites, de modo a promover equilíbrio social.

 

É claro que enfrentamos grandes desafios, especialmente porque não basta testemunhar mudanças, é preciso acolhê-las, internalizá-las e torná-las valores íntimos e culturais.

 

No Brasil, um pais positivista, que quer dizer que os valores culturais da sociedade devem ser formalizados na letra da lei, a abolição da escravidão aconteceu em 1888, não pela mera assinatura da Lei Áurea, mas pela luta de um povo e consciência de outros.

 

Ainda que ela não tenha, infelizmente, eliminado o preconceito ou a falta de oportunidades, foi inegavelmente um avança social, que permitiu darmos um passo à frente no desenvolvimento humano.

 

Não houve reparação nem real libertação das pessoas, à época, mas para muitos somente o arremesso à margem da sociedade, negando-lhes oportunidades, mas de outro modo, numa nova e cruel realidade.

 

Isso continuou alimentando o pior do ser humano que passa a agir de outras formas para alcançar o mesmo resultado: exploração injusta e indigna do trabalho alheio.

 

O Código Penal brasileiro, que lista muitas das condutas e circunstâncias consideradas crimes no país, tipifica em seu art. 149 a "redução a condição análoga à de escravo".

 

Neste artigo ele é claro ao dizer que submeter alguém a trabalho forçado ou a jornada exaustiva, expondo-o a condição degradante de trabalho e/ou restringindo sua liberdade por dívidas contraídas com o empregador ou seu preposto é trabalho análogo à de escravo.

 

 

Fundamentos da Saúde e Segurança do Trabalho e como ela pode contribuir para combater essa forma de exploração.

A Saúde e Segurança do Trabalho (SST) é muito mais do que um conjunto de conhecimentos especializados em engenharia de segurança, medicina ocupacional, jurídico (leis trabalhistas e normativas prevencionistas) que visa prevenir acidentes e doenças relacionadas ao trabalho.

 

A SST é a completa e absoluta antítese do trabalho escravo ou análogo a ele, posto que justamente promove melhores condições de trabalho e qualidade de vida ao ser humano.

 

Não porque promovemos condições ambientais menos agressivas ou fornecemos equipamentos de proteção, mas sim pelo reconhecimento da dignidade humano, no trabalho e fora dele.

 

Isso porque, melhorar as condições de trabalho também significa conscientizar os trabalhadores de múltiplos riscos à segurança e saúde, apurando sua percepção de riscos e educando sua conduta frente a eles (riscos).

 

Muitos desses riscos são encontrados, também, além das fronteiras físicas do estabelecimento laboral, então conscientizados os trabalhadores passam a poder evitá-los, para toda sua vida.

 

Para tanto é preciso que o prevencionista, profissional dedicado à área, adquira uma série de conhecimentos específicos, multidisciplinares, para saber identificar, analisar, dimensionar, avaliar, conscientizar sobre e planejar meios de prevenir ou reagir a riscos ocupacionais.

 

Isso, sem sombra de dúvidas, cria no profissional um juízo de valores apurado, uma consciência sofisticada quanto ao tema, e uma grande capacidade de identificar cenários de melhoria.

 

É exatamente aqui que concluímos que qualquer bom (atento, zeloso e dedicado) profissional da área tem total condição de auxiliar o Estado no combate ao trabalho análogo ao escravo.

 

 

Temos a faca e o queijo não mão!

Estamos em todos os lugares, analisando diariamente milhares de diferentes cenários de trabalho, rural ou urbano, em terra ou offshore, sob todos os prismas e condições de temperatura e pressão há um prevencionista lá, fazendo seu trabalho.

 

Nesse aspecto temos grandes poderes e grandes responsabilidades, por isso não podemos deixar de agir, sabendo do nosso papel social e é por isso que você deve denunciar!

 

Diferente do que muitos acreditam não é papel do prevencionista responsabilizar-se por condições inseguras de trabalho ou realização de trabalhos perigosos, mas sim de “inventariar riscos”, propor um “plano de ação”, conscientizar empregadores e empregados. Nada mais.

 

Tudo que há entre a identificação de perigos, reconhecimento de riscos, a propositura de medidas de prevenção, implementação e acompanhamento delas é de nossa responsabilidade, mas no sentido de: Alertar e dar suporte.

 

Retóricas e argumentações, no contexto de trabalho análogo ao de escravo, não devem ter espaço, infelizmente aqui a sua liberdade de pensamento esbarra no risco de entorpecê-lo frente ao testemunho do sofrimento alheio.

 

Como identificar.

Então, se de alguma forma, você encontrar:

I. Condições de trabalho degradante: alojamentos, precários, sem ventilação ou iluminação adequadas, sem água potável, camas, banheiro ou condição higiênica.

II. Remuneração irrisória: salário abaixo do mínimo legal ou abaixo do inicialmente combinado, especialmente se por descontos de dívidas contraídas com a empresa ou seu representante.

III. Jornada exaustiva: excessivamente longa, sem tempo de folgas regulares e pagamento adequado.

IV. Trabalho forçado: por meio de coação física ou psicológica, ameaças, dívidas abusivas, retenção de documentos e outras formas de coerção.

V. Condição insalubre: a exposição a agentes ambientais insalubres ou perigosos, sem qualquer medida de proteção adequada ou conscientização/treinamento dos riscos associados.

VI. Restrição à liberdade: que retira ou restringe do trabalhador o direito de ir e vir, de se comunicar com outros (ex. familiares e amigos).

 

Para todas ou quaisquer dessas condições encontradas em ambientes de trabalho, ainda que em forma de suspeita, é importantíssimo denunciar a situação às autoridades competentes (v.g. MTP, Polícia federal).

 

Lembre-se que não há retorica ou qualquer outra forma de argumentação que busque justificar essas condições, a prática é ilegal!

 

Como Prevenir (texto CNJ)

Com licença, transcrevemos aqui um trecho do site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que ilustra muito bem como o trabalhador (e outros!) podem identificar "oportunidades" disfarçadas de armadilhas, veja: 

"A prevenção é sempre a melhor iniciativa.

1) Duvide sempre de propostas de emprego fácil e lucrativo.

2) Sugira que a pessoa, antes de aceitar a proposta de emprego, leia atentamente o contrato de trabalho, busque informações sobre a empresa contratante, procure auxílio da área jurídica especializada. A atenção é redobrada em caso de propostas que incluam deslocamentos, viagens nacionais e internacionais.

3) Evite tirar cópias dos documentos pessoais e deixá-las em mãos de parentes ou amigos.

4) Deixe endereço, telefone e/ou localização da cidade para onde está viajando.

5) Informe para a pessoa que está seguindo viagem endereços e contatos de consulados, ONGs e autoridades da região.

6) Oriente para que a pessoa que vai viajar nunca deixe de se comunicar com familiares e amigos.

Em caso de Trabalho Escravo, denuncie! Disque: 100"


Especialmente você prevencionista, que tem total condição de apurar fatos, cabe conscientizar, alertar e denunciar.

 

Se perceber que o empregador não dá ouvidos para avisos e aconselhamento sobre tais condições denuncie! Deixe que as autoridades façam seu papel. Ajuda o próximo!

 

Denuncia, disque 100! Este é o canal de denúncia para violação de direitos humanos. Acesse o site oficial.


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Referências:

BRASIL, Consolidação das Leis Trabalhistas. Decreto Lei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940.

______, Serviço de Informação do Brasil, Assistência Social, Disque Direitos Humanos -  Disque 100. Link acessado em 02 de abril de 2023 https://www.gov.br/pt-br/servicos/denunciar-violacao-de-direitos-humanos

______, Ministério do Trabalho. Normas Regulamentadoras, Portaria 3214 de 08 de julho de 1978.

CONFORTI, Luciana Paula, A interpretação do conceito de trabalho análogo ao escracvo no Brasil: o Trabalho digno sob o prisma da subjetividade e a consciência legal dos trabalhadores, AMATRA. Link acessado em 31 de março de 2023 https://www.anamatra.org.br/files/ConpediFINAL.pdf

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. O que é trabalho escravo. Link acessado em 02 de abril de 2023 https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/trabalho-escravo-e-trafico-de-pessoas/trabalho-escravo/

COMISSÃO NACIONAL PARA A ERRADIAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO. Trabalho Escravo no Brasil: Desafios para sua Erradicação. Relatório da CONATRAE, 2018.

GOMES, Angela de Castro. Trabalho análogo a de escravo: construindo um problema. Link acessado em 30 de março de 2023 https://doi.org/10.51880/ho.v11i1-2.148

MARINHO, Maiara Oliveira e Fernando de Oliveira Vieira. A jornada exaustiva e a escravidão contemporânea. Link acessado em 30 de março de 2023 https://doi.org/10.1590/1679-395171623

MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. A Escravidão Moderna no Brasil, documentário, 2019.

SAKAMOTO, Leonardo e Giselle Tanaka. Trabalho Escravo e Direitos Humanos no Brasil, Editora Contexto, 2019.

SOUZA, Vinicius de. Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: Conceito, Características e Consequências,  Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, 2019.

TREVISO, Marco Aurélio Marsiglia. Combate ao Trabalho Escravo no Brasil: Um Estudo sobre a Atuação do Ministério Público do Trabalho. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, 2017.

VEDOVATO, Luís Renato. Trabalho Escravo no Brasil: Um Estudo de Caso sobre a Fiscalização no Setor Sucroalcooleiro, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2018.



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